CORONAVÍRUS E A LUTA DE CLASSES
Vários Autores
Editora Terra Sem Amos
Publicação: Fevereiro/2020
Em 11 de março de 2020 fomos surpreendidos com o alerta de Pandemia declarado pela Organização Mundial de Saúde – OMS. Essa é a primeira vez, desde a segunda metade do Século XX, que uma crise sanitária dessa proporção acontece. Nós não estávamos preparados para ela.
Por isso - e por conta da urgência do assunto - vários intelectuais de peso resolveram divulgar ao mundo suas opiniões e prognósticos para o mundo pós-Covid-19. Publicado pela Editora Terra Sem Amos, é um material relativamente curto que, num dia de tédio, dá para ler numa sentada só.
O primeiro texto é do norte-americano MIKE DAVIS, escritor, ativista político, teórico urbano e historiador. Ele é mais conhecido por suas investigações de poder e classe social em sua terra natal no sul da Califórnia, e, talvez por isso, tenha uma análise mais “inocente” da pandemia. Inocente não é bem o termo, eu diria que mais afinada com aquela imagem vendida pelos estúdios hollywoodianos de que os EUA vão salvar o mundo da catástrofe eminente.
Apesar do texto não ter agradado boa parte do grupo de estudos, não podemos negar que ele traz informações muito relevantes do desastre que é o sistema de saúde norte-americano e o peso dele para a população que não possui ativos em Wall Street. Para ilustrar bem essa afirmação, segue um trecho do texto:
“As contradições mortais dos cuidados de saúde privados numa época de peste são mais visíveis na indústria de asilos com fins lucrativos que alberga 1,5 milhões de idosos americanos, a maioria deles pelo Medicare. É uma indústria altamente competitiva, capitalizada por baixos salários, falta de pessoal e cortes ilegais de custos. Dezenas de milhares morrem todos os anos devido à negligência das instalações de cuidados a longo prazo em relação aos procedimentos básicos de controle de infecções e ao fato de os governos não responsabilizarem a administração por aquilo que só pode ser descrito como homicídio culposo. Muitos destes asilos acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que contratar funcionários adicionais e dar-lhes formação adequada.”
De forma geral, é um texto bem interessante e informativo. Infelizmente, as soluções fornecidas pelo autor parecem não dar conta da enormidade do problema a ser enfrentado, pois parecem modestas demais para conseguir resolver um problema que tem mais relação com a mentalidade da nação do que o próprio autor parece acreditar.
Enfim, apesar das ressalvas é um texto que esclarece de forma muito interessante vários assuntos ligados à poderosa indústria farmacêutica norte-americana e o catastrófico sistema capitalizado de saúde daquele país.
O segundo texto é do britânico DAVID HARVEY, teórico da área da Geografia formado na Cambridge University. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. Em 2007 foi classificado como o décimo oitavo teórico vivo mais citado nas ciências humanas. É dele o livro “17 Contradições do Capitalismo”, material importante para entendermos nosso presente.
Como teórico renomado que é, David Harvey não decepciona. É dele uma das análises mais interessantes desse material. Como geógrafo social, o escritor fornece vários dados e avaliações das possíveis repercussões dessa pandemia para a dinâmica global de acumulação desenfreada de capital e as prováveis crises daí provenientes. Junto a isso, ele aponta vários problemas nos precários sistemas de saúde públicos existentes nas Américas e na Europa que, para azar da humanidade, não possuem previsão de melhora.
Assim como os outros escritores deste material, Harvey também entende há uma extrema incompatibilidade entre as necessidades sanitárias globais e os fins altamente lucrativos da indústria farmacêutica. Esse poderoso setor não perde tempo com atividades que não gerem lucros e, para ajudar nesse cenário, os governos de todo o mundo - afinados com os interesses econômicos das grandes corporações - têm paulatinamente diminuído os investimentos em pesquisas de todas as frentes. Desta maneira, fica fácil entender como chegamos ao caos atual. No entanto, como quem entende mesmo do assunto é o Harvey, segue um trecho que deixa essa questão mais cristalina que água mineral:
“A indústria farmacêutica tem pouco ou nenhum interesse na pesquisa sem fins lucrativos sobre doenças infecciosas (como toda a classe de coronavírus conhecidos desde os anos 60). A indústria farmacêutica raramente investe em prevenção. Tem pouco interesse em investir na preparação para uma crise de saúde pública. Adora desenhar curas. Quanto mais doentes nós estamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para uma valorização dos acionistas. O modelo de negócio aplicado à oferta de saúde pública eliminou a capacidade de resposta que seria necessária em caso de emergência. A prevenção nem sequer era um ramo de trabalho sedutor o suficiente para justificar parcerias público-privadas.”
Pois é, Harvey sabe do que está falando e ler seu texto é, sem sombra de dúvidas, uma mini-aula de geopolítica.
O terceiro texto é do francês ALAIN BIHIR, sociólogo ligado à corrente do comunismo libertário. Conhecido por seus estudos acerca da extrema-direita francesa, em especial do Front National, é também autor de vários estudos sobre socialismo e o movimento operário e um dos fundadores e editores da revista À Contre Courant.
De todos os textos do material, este é talvez o mais objetivo. Bihir aponta o problema e elenca em tópicos várias ações que entende pertinentes ao enfrentamento da pandemia pelo governo francês. As más línguas dirão que ele “passou um baita dum pano” para o Macron (confessamos que no grupo de estudos algumas línguas estavam envenenadas)... Mas, apesar desse pequeno detalhe, há muita coisa interessante nas propostas oferecidas pelo autor.
Para fins de exemplo segue uma delas:
“a obrigação de todo o corpo médico, no final dos seus estudos, trabalhar durante um determinado período de tempo nestes centros de saúde, em troca da cobertura pelo Ministério da Saúde dos custos de todos ou parte dos seus estudos;”
Por ser um escritor que se define afiliado ao comunismo libertário, as propostas são até que bem moderadas, o que nos faz questionar o termo "libertário" da definição. Enfim, não sabemos até que ponto as propostas apresentadas são aplicáveis no caso concreto ou, uma vez aplicadas, se são capazes de surtirem efeitos positivos a longo prazo. De qualquer maneira, é bem interessante pensar na (in)aplicabilidade de todas as proposições expostas no texto.
O quarto texto é do uruguaio RAÚL ZIBECHI, jornalista, escritor e pensador-ativista, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina.
O texto de Raúl Zibechi deu ao grupo, de forma generalizada, uma impressão de opinião precipitada, talvez ainda não se tivesse no começo de Fevereiro de 2020 (quando o texto foi produzido) a real dimensão ou uma segura projeção da pandemia pelo novo Coronavírus.
O autor demonstra uma grande preocupação com a militarização e as formas de controle do autoritarismo a partir das medidas de contenção do vírus, preocupação esta que sempre vem acompanhada de grandes crises, com uso de ferramentas tecnológicas e até mesmo a tradicional truculência policial, tudo isso revestido de um verniz de cuidado por parte do Estado com a saúde da população, ao passo que medidas de resgate e proteção social não estariam sendo aplicadas com a mesma intensidade.
A preocupação é bastante válida e, talvez, ao longo do tempo a ameaça fique mais evidente sem o verniz da pandemia. Mas a sensação é que as mudanças provocadas pelo novo Coronavírus foram mais rápidas, mais dinâmicas e mais drásticas do que a visão específica do autor pôde alcançar. Mesmo não tratando a situação de maneira amplificada, o texto não deixa de ser uma denúncia e deve ser levada em consideração, embora os argumentos utilizados no texto para justificar a preocupação não tenham conseguido sustentação ao longo dos poucos meses de pandemia decretada pela OMS em 11 de Março de 2020.
“É necessário insistir em que o medo está circulando em maior velocidade que o coronavírus e que, ao contrário do que se faz crer, o principal assassino na história da humanidade foi e é a desnutrição, como destaca uma imprescindível entrevista no portal Comuneinfo. O habitual na história foi colocar em quarentena pessoas infectadas, mas nunca se isolou deste modo a milhões de pessoas saudáveis. O médico e professor do Instituto de Saúde Global, da University College London, Vageesh Jain, questiona: Justifica-se uma resposta tão drástica? O que acontece com os direitos das pessoas saudáveis?”
“O boletim 142 do Laboratório Europeu de Antecipação Política (LEAP) reflete: A China desencadeou um plano de ação de emergência de magnitude sem precedentes, após somente 40 mortes em uma população de 1,2 bilhão de pessoas, sabendo que a gripe mata 3.000 pessoas na França todos os anos. Em 2019, a gripe matou 40.000 pessoas nos Estados Unidos. O sarampo mata 100.000 pessoas todos os anos e o influenza (gripe) meio milhão no mundo.”
Infelizmente, hoje, dia 10 de maio de 2020, o novo Coronavírus já fez em quatro meses (desde Dezembro de 2019, quando a China isolou a província de Hubei) 280 mil mortos e 4,06 bilhões de pessoas foram infectadas no mundo.
O quinto texto é do francês ALAIN BADIOU, filósofo, dramaturgo e novelista francês nascido no Marrocos. É conhecido por sua militância maoísta, por sua defesa do comunismo e dos trabalhadores estrangeiros em situação irregular na França.
Escreveu o texto “Sobre a situação epidêmica” com uma abordagem áspera sobre a formação de estadistas em tempos de crise. Badiou trata das ações do presidente francês, Emmanuel Macron, com pitadas de sarcasmo que não deixam de ser acertadas, afinal não é preciso ser uma figura política incrivelmente sensata para entender que o coronavírus não é somente uma “gripezinha”.
O autor demonstra preocupação com uma crescente e sensação de desespero e histeria que podem servir de munição para demagogos e governos autoritários em potencial, mas também aponta para uma oportunidade de virar a mesa:
“Quanto àqueles de nós que desejam uma mudança real nas condições políticas deste país, devemos aproveitar este interlúdio epidêmico, e mesmo o isolamento – inteiramente necessário – para trabalhar sobre novas figuras políticas, sobre o projeto de novos locais políticos e sobre o progresso transnacional de uma terceira fase do comunismo, depois da brilhante fase da sua invenção e da – interessante mas finalmente derrotada – fase da sua experimentação estatista.”
Badiou disserta bem mais sobre o aspecto político da crise e tem seu ponto de partida nas narrativas e estratégias de um velho e de um novo sistema político-social. Também faz um alerta-apelo ao bom senso para que as fakenews não tomem ainda mais fôlego e o negacionismo ganhe mais palco:
“De passagem, será preciso mostrar publicamente e sem medo que as chamadas “redes sociais” demonstraram mais uma vez que são, acima de tudo – para além do seu papel na engorda dos bolsos dos bilionários –, um lugar de propagação da paralisia mental dos fanfarrões, dos rumores descontrolados, da descoberta de “novidades” antediluvianas, ou mesmo do obscurantismo fascista. Não demos crédito, mesmo e sobretudo no nosso isolamento, a não ser às verdades controláveis pela ciência e às perspectivas fundadas de uma nova política, das suas experiências localizadas, bem como dos seus objetivos estratégicos.”
O sexto e último texto é do esloveno SLAVOJ ZIZEK (um nome que dispensa apresentações), mas que para não destoar dos outros, também terá seus predicados ressaltados, principalmente por ter se transformado numa figura icônica da intelectualidade moderna: filósofo, professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana, Diretor Internacional da Birkbeck/Universidade de Londres e, claro, piadista.
O texto Um golpe como “Kill Bill” no capitalismo traz uma interpretação bastante coesa sobre a pandemia. O autor reconhece a importância das medidas de isolamento e faz um alerta para ideologias adormecidas que usam de princípios de segregação para excluir ainda mais as minorias, mas, ao mesmo tempo, também consegue ver com um pouco de esperança o panorama da pandemia. O autor elogia as ações da OMS e sai em defesa do fortalecimento do órgão. Para Zizek, um vírus ideológico benéfico também se espalharia, e ao tratar de reflexões sobre antropologia, ciência, filosofia, política e pessoas despertas, ele mistura toda essa temática em um imenso caldeirão e consegue obter uma sopa com algumas soluções possíveis para mudar o sistema vigente:
“Mas talvez outro vírus ideológico, muito mais benéfico, se espalhe e nos contagie: o vírus do pensamento em termos de uma sociedade alternativa, uma sociedade para além do Estado-nação, uma sociedade que se atualiza sob a forma de solidariedade e cooperação global.”
Zizek desenvolve uma teoria bastante peculiar quando explica a relação da acentuação da decadência do capitalismo na pandemia e o famigerado filme de Tarantino:
“Na cena final do filme de Quentin Tarantino, “Kill Bill: Volume 2”, Beatrix derrota o malvado Bill e lhe dá a “técnica dos cinco pontos para explodir um coração”, o golpe mais mortal de todas as artes marciais. O movimento consiste numa combinação de cinco golpes com a ponta dos cinco dedos em cinco locais diferentes no corpo do inimigo. Quando o inimigo se retira e dá cinco passos, seu coração explode dentro de seu corpo e ele cai irremediavelmente morto no chão. Este ataque faz parte da mitologia das artes marciais, e evidentemente impossível de realizar em combate real mão-a-mão. Mas, no filme, depois da Beatrix o executar, Bill calmamente faz as pazes com ela, dá cinco passos e morre...”
“A minha modesta opinião é muito mais radical. A epidemia do coronavírus é uma espécie de “técnica de cinco pontos para explorar um coração” destinada ao sistema capitalista global. É um sinal de que não podemos continuar no caminho em que temos estado até agora, de que é necessária uma mudança radical.”
O autor também observa quão lamentável é chegar ao ponto de uma pandemia ser o fator para despertar a percepção e compreensão da insustentável leveza do ser do capitalismo para boa parte das pessoas.
Enfim, definitivamente é um material que merece ser lido!
Jaqueline Menezes
Patricia Llorente
Grupo de Estudos Políticos
Práxis Revolucionária
Enfim, definitivamente é um material que merece ser lido!
Jaqueline Menezes
Patricia Llorente
Grupo de Estudos Políticos
Práxis Revolucionária

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