Por Patrícia Llorente*
É impressionante que o país esteja se voltando para a face mais nefasta do neoliberalismo. A sociedade brasileira chegou a um estado de falência tão profundo que os próprios cidadãos começaram a acreditar que seus direitos há muito adquiridos - visando a garantia de uma vida com o “mínimo do mínimo” de dignidade - são, em realidade, empecilhos gigantescos para a economia, para o bom andamento do Mercado e ao bem-estar da Nação.
Em outras palavras, a lógica dominante é que A VIDA MINIMAMENTE DIGNA DA POPULAÇÃO CIVIL É INCOMPATÍVEL COM OS INTERESSES DO MERCADO. Dá pra acreditar numa coisa dessa? Nosso bem-estar, o respeito da nossa dignidade é contrário aos interesses da Nação? Isso parece ser possível? Quer dizer que minha vida pode ser esmagada em nome da saúde do mercado? Se a resposta for sim, então nós, enquanto pessoas, perdemos todo o respeito por nós mesmos e o dinheiro tem realmente mais valor do que a vida humana, infelizmente...
Mas qual é o nome que damos para esse sistema atual que valora o dinheiro acima de todas as coisas? NEOLIBERALISMO. Porém, não podemos esquecer que para a existência da partícula “neo”, significa que há algo anterior que foi renovado, que é novo, neste caso, o Liberalismo em seu estado original.
Inicialmente, o Liberalismo[1] foi uma corrente doutrinária criada durante o Iluminismo que defendia a liberdade, igualdade e fraternidade entre os membros da burguesia econômica e a aristocracia decadente da época. A grosso modo, essa teoria alegava a igualdade entre essas duas camadas sociais, contestando o privilégio hereditário dos monarcas, o direito divino dos reis e a legitimidade das monarquias absolutistas.
Segundo o Liberalismo, a sociedade deveria basear-se nessas três máximas (liberdade, igualdade e fraternidade) e no contrato social, já que cada homem possuía direito natural à vida, à liberdade sobre si e à manutenção da propriedade privada, sendo vedado ao governo monarca da época, portanto, violar esses direitos.
Pois bem, depois do Séc. XVIII provar que essa liberdade formal entre as pessoas pregada pelo Liberalismo não era real [já que a burguesia mercantil da época explorava os trabalhadores (homens, mulheres e crianças) até a morte[2], obrigando-os a trabalhar facilmente 16 horas por dia para ganhar uma miséria que não garantia nem o prato de comida do dia seguinte], os trabalhadores, cansados da situação de escravidão em que eram obrigados a viver, começaram a se revoltar contra a realidade imposta.
É desse período o início dos movimentos organizados de trabalhadores para exigir melhores condições de trabalho, redução de jornada de mulheres e crianças[3], mais segurança dentro das fábricas, enfim, exigir o mínimo de dignidade no trabalho. Foi um período bem conturbado da História.
E nessa época, diante do crescimento da revolta popular, o Estado Liberal [aquele mesmo que havia se livrado do poder da aristocracia gritando igualdade – em relação aos aristocratas; fraternidade – com os aristocratas; e liberdade – de modo a não mais se submeter aos mandos e desmandos da aristocracia; mas somente em relação à aristocracia, pois os camponeses e proletários continuavam a ser explorados até a morte], esse Estado aí, acuado pela pressão dos trabalhadores revoltados, foi obrigado a ceder em algumas de suas reivindicações para acalmar a revolta popular. Ele não poderia continuar se comportando como se trabalhadores e donos de fábricas fossem realmente iguais, não podia mais desconsiderar o desequilíbrio entre o poder do dinheiro e a necessidade de se submeter a condições sub-humanas de trabalho para sobreviver[4]. Continuar nesse caminho seria o mesmo que condenar o Estado Liberal à derrocada, pois os trabalhadores estavam cada vez mais cientes de sua situação de explorados/escravizados.
Não é por acaso que Karl Marx e Friedrich Engels escreveram como primeira frase do Manifesto do Partido Comunista: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”[5]; algumas traduções trocam o termo espectro por fantasma, mas o significado continua o mesmo. Depois de um período de exploração extrema, o movimento dos trabalhadores passou a ser uma verdadeira ameaça ao sono tranquilo da burguesia da época. Ou eles cediam e garantiam o mínimo aos trabalhadores esfolados nos chãos das fábricas ou, talvez, não haveriam fábricas a serem salvas.
Assim, com o objetivo de acalmar os trabalhadores revoltados e afastar o medo de perderem seu dinheiro por causa do comunismo, o Estado Liberal concedeu – de má vontade – algumas migalhas para abafar o clamor social. Era isso ou o caos absoluto. Assim nasceram as primeiras leis trabalhistas no mundo, pelo medo da revolta popular e do triunfo dos estados com viés social.
A revolta popular e o medo do comunismo fizeram com que o Estado Liberal controlado pela burguesia mercantil cedesse às reivindicações dos trabalhadores. Foi o medo de perder suas fábricas e lucros milionários que fez com que o mundo começasse a experimentar um período de maior intervenção estatal e políticas de proteção à dignidade das pessoas. Foi por medo da força proletária que a burguesia precisou criar leis trabalhistas para garantir um patamar mínimo de proteção à vida e dignidade do trabalhador. Foi por medo dos trabalhadores que a burguesia passou a reconhecer que os homens não são iguais, que o dinheiro os coloca em posições muito diferentes na balança social. Foi por medo da revolta popular que a burguesia aceitou a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Não se enganem, absolutamente todas as conquistas sociais no mundo até hoje foram alcançadas pelo medo da burguesia de perder seu controle estatal[7].
Mas a história é cíclica e os estudos históricos demonstram que a sociedade não aprende com seus próprios erros.
Com o passar do tempo e a organização crescente do movimento trabalhador, o Estado passou a intervir cada vez mais nas relações sociais. O Estado Liberal, que pregava a mínima interferência do Estado, foi obrigado a mudar sua postura para intervir cada vez mais com a intenção de pacificação social. O crescimento dos Estados Intervencionistas foi se aprimorando durante boa parte do século XX. A este tipo de Estado, convencionou-se nomeá-lo Estado do Bem-Estar Social. Agora o objetivo era fazer dos trabalhadores, consumidores. Com a sociedade paulatinamente pacificada por meio de migalhas estatais, os trabalhadores não tinham mais motivos sólidos para continuar lutando, comprar era uma atividade muito mais pacífica e satisfatória. E assim a coisa andou por boas décadas.
Acontece que os burgueses, por sua vez, começaram a se sentir injustiçados. Não era justo destinar parte de seus lucros milionários conseguidos exclusivamente por seus méritos e esforços individuais[8] [não esqueçam que eles acreditam que não exploram o trabalhador, na verdade eles acham que os trabalhadores são uns folgados preguiçosos que só servem para diminuir-lhes o lucro e recebem muito para fazer nada], para o bem-estar social, os trabalhadores que lutassem e conseguissem virar milionários; se eles, filhos de banqueiros e grandes industriais, estudantes das melhores e mais caras escolas e universidades do mundo conseguiram, qualquer um também conseguiria.
Nesse ponto alguém irá se questionar: Mas e os milionários que não eram herdeiros de grandes fortunas? E os pobres sem estudo e os negros que enriqueceram? Pois bem, eles existem, mas é possível acreditar que eles conseguiram chegar lá totalmente sozinhos? Não houve nenhum sócio a investir algum capital, ainda que pequeno, no início do projeto de garagem (aqui podemos pensar no exemplo da Apple); Não houve nenhuma concessão de uma bolsa-de-estudos integral – ou mesmo parcial – em alguma escola de ponta paga pelo dinheiro de algum ricaço interessado em alardear seu bom coração por meio da caridade?; Não houve algum empréstimo bancário garantido por hipoteca ou alienação fiduciária para garantir o investimento inicial (lembrando que esses empréstimos são garantidos por bens privados como casas e carros, por exemplo); Dificilmente, encontraremos milionários “self-made” que não tenham contado com algum tipo de ajuda externa, ainda que mínima... Um empréstimo, uma pequena herança, um bilhete de loteria, um investidor inicial que poderia ser a própria tia... Pense nisso!
Enfim, prosseguindo com o tema, voltemos a pensar nos acontecimentos do Séc. XX e de como chegamos ao Capitalismo Neoliberal.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o fim da Guerra Fria e o estabelecimento da hegemonia dos EUA como potência mundial, a propaganda imperialista dominou o globo terrestre. Os cartazes coloridos, os filmes de Hollywood, o medo dos comunistas comedores de criancinhas, a música, a TV a cores, os eletrodomésticos mais modernos, as propagandas vendendo a vida perfeita num reclame ensolarado de margarina; Todos passaram a acreditar que para ter uma vida cheia de conforto e felicidade bastava trabalhar muito, trabalhar duro por dez, quatorze, dezoito horas por dia em prol de seus próprios sonhos. Que para progredir no mundo basta sua força de vontade, dedicação e todos aqueles produtos moderníssimos dos anúncios do rádio e da TV. Que a intervenção estatal e o Estado “inchado” são obstáculos para a riqueza. Que políticas de bem-estar social tornam as pessoas preguiçosas e acomodadas. Que bem-estar social cria parasitas. Que políticas sociais atrapalham o progresso.
Aldous Huxley já havia constatado em seu aclamado “Admirável Mundo Novo” que “sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade”. Pois bem, a sociedade da segunda metade do Séc. XX tanto repetiu essas máximas que o mundo passou a acreditar plenamente nelas. Meritocracia, baby.
Com essa nova ideologia dominando o lado ocidental do globo, o fracasso da experiência soviética que havia tentado implantar o socialismo conjugado com a ascensão dos governos austeros de Ronald Regan e Margareth Thatcher, o mundo passou a ser bombardeado com as ideias liberais recauchutas. O inimigo não era mais a aristocracia nobiliária do Séc. XVIII, agora o Estado do Bem-Estar Social era o alvo inimigo a ser eliminado. A velha teoria Liberal foi adaptada para a nova realidade do final do Séc. XX: tecnologia, eletrodomésticos, comunicação, marketing dirigido, psicologia experimental, ideologia consumista desenfreada, produtividade, lucro individual sem limites e eliminação quase completa das obrigações tributárias de compensação da iniciativa privada exploratória e opressora para manter a saúde da sociedade da qual ela se aproveitou e espoliou. Agora, a ideia dominante é “cada um por si e deus contra todos”. Nascia, assim, o Neoliberalismo, o Liberalismo 2.0.
Mas é claro que o Brasil não escapou dessa onda.
Mesmo como país atrasado da periferia do capitalismo, o Brasil semicolonial, escravocrata e completamente estratificado também foi obrigado a seguir o movimento mundial de intervenção estatal. O começo do Séc. XX no Brasil também foi marcado por movimentos sociais. No entanto, a partir da segunda metade do século, a sociedade brasileira, assim como o resto do mundo, foi igualmente bombardeada com a ideia de que o Estado estava inchado, que as leis trabalhistas atravancavam a economia, que o patrão é um coitado que faz das tripas coração para pagar os encargos trabalhistas. Afinal, os patrões precisam manter suas casas em condomínios de luxo fechados, seus carros importados blindados, as escolas particulares de seus filhos, os colares de diamantes, as viagens internacionais de férias, a panela Le Creuset, o plano de saúde com direito a internação particular nos melhores e mais caros hospitais da cidade. Não há nada de errado essas benesses serem usufruídas apenas por poucos. E, pagar essa infinidade de impostos sobre a folha de pagamento é, sem sombra de dúvidas, retirar a possibilidade de lucro estratosférico e vida de luxo do patrão tão bonzinho, que paga esses impostos apenas por ter bom coração. A partir dessa época, ficou cada vez mais claro que a elite econômica vê o trabalhador como um custo alto e desnecessário da produção que, por isso, merece receber o mínimo do mínimo do mínimo e ainda agradecer de joelhos.
A sociedade brasileira, assim como o resto do mundo capitalista, começou a vender a ideia da meritocracia, de que o Estado está atrapalhando as pessoas de serem milionárias, que trabalhando com afinco seu primeiro milhão estará logo ali na esquina. As pessoas passaram a acreditar nisso. Os filmes vendem essa ideia. Os livros vedem essa ideia. Os desenhos animados vendem essa ideia. Todos compraram essa versão e, agora, todos querem o seu lugar ao sol.
Também para isso encontramos uma citação de Karl Marx e Friedrich Engels no livro "A Ideologia Alemã": "As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes". Pois é, a elite econômica conseguiu incutir em toda a população a expressão ideal de suas relações materiais, a de que as coisas, assim como as pessoas, são descartáveis, que a população não passa de uma massa a ser gasta e explorada em prol da boa vida deles. Que eles tem pleno direito a tudo, pois eles mereceram. Toda a cultura passou a bombardear os indivíduos com essas ideias, às vezes de forma velada, outras vezes escancaradas.
E, assim, chegamos ao Séc. XXI.
Mesmo com essas ideias se propagando pelo mundo, o Brasil conseguiu, em 2003, eleger um governo de esquerda. Esse governo, na contramão do mundo, voltou seus esforços ao intervencionismo como forma de apaziguar as desigualdades sociais. Durante sua gestão, o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico nuca visto antes. Até a dívida externa foi quitada. Mas havia um problema, a condição social daquelas pessoas que antes só serviam para trabalhos subalternos começou a mudar. Era possível ver brasileiros típicos passeando em "shoppings centers" de "brasileiros-noruegueses". Uma afronta, um acinte! Mas não se engane, esse governo de esquerda jamais poderá ser chamado de comunista ou socialista no sentido puro do termo, mas sim de reformista, que acreditava que poderia usar a máquina estatal dominada há séculos pela elite econômica a favor de 90% “normal” da população.
Foi um lindo sonho enquanto durou, porém a classe dominante não gostou nada disso e diante da ameaça de continuidade do governo reformista implantado desde 2003, planejou e executou um golpe de estado para devolver à elite o controle estatal.
Aqui é importante ressaltar que o governo esquerdista-reformista brasileiro esqueceu de um fato extremamente importante: o Estado, como instituição, foi criado para tutelar os interesses da classe econômica dominante. Desde seus primórdios, todo aparato estatal foi formatado para perpetuar a elite dominante no poder. O Estado policial que deseja manter a ordem a qualquer custo. E qual é essa ordem? Elite no lugar de elite e população operária no lugar de população operária. Claro que temos a tal classe média achando que não faz parte da classe operária, mas isso também é trabalho da ideologia dominante, que precisa alienar essa classe para que ela não se oponha à ordem das coisas. Eles também são parte importante de toda essa situação.
Ora, nunca foi intenção do Estado burguês proporcionar a ascensão da classe trabalhadora à condição de cidadão. Nunca foi intenção do Estado burguês proporcionar educação de qualidade e emancipadora à classe trabalhadora, esse tipo de educação sempre foi reservado para os filhos da elite. Nunca foi intenção do Estado burguês dividir espaço com a classe trabalhadora dentro de aviões, para isso existe a rodoviária e os carros de boi. Nunca, jamais, foi intenção do Estado burguês proporcionar condições dignas de vida para a classe trabalhadora. Para eles, quem vive bem se acomoda, vira preguiçoso. Trabalhador tem que sofrer muito para dar valor ao salário de miséria, esmola caridosa paga no fim do mês.
Assim chegamos à 2020. O ano em que descobrimos que o Brasil pode ser pior do que os nossos piores pesadelos. Pessoas defendendo o indefensável.
Não precisamos mais nos espantar com empresários de pequeno e médio porte passeando dentro de seus carros importados, usando suas máscaras de proteção contra o Covid-19 ao mesmo tempo em que apertam suas buzinas estridentes para obrigar os trabalhadores a voltarem aos seus postos de trabalho. A morte não é um problema. Um trabalhador morre, há pelo menos mais 5000 para ocupar o seu lugar. Há excesso de oferta de mão-de-obra, por isso as mortes das pessoas que não fazem parte da elite econômica não passam de números a serem computados no fim do dia. Elas não importam!
Pensando em toda a trajetória das conquistas e garantias sociais alcançadas mundialmente por meio de muita luta e sangue durante os séculos anteriores, o normal seria nós nos espantarmos com a Reforma Trabalhista, por exemplo, que foi aprovada rapidamente e sem firme oposição por parte dos prejudicados. Porém, não há espanto! Testemunhamos pessoas aplaudindo de pé os avanços trazidos por uma lei que viola frontalmente cláusulas pétreas constitucionais de proteção ao patamar mínimo de respeito à dignidade do trabalhador. Patamar mínimo. Testemunhamos o massacre dos poucos direitos que separavam o trabalhador brasileiro da condição análoga de escravo que o Estado está a exigir-lhe. Testemunhamos o Estado burguês voltar a repetir a mentira do século: “é para o bem do mercado”.
Aqui vale fazer um comentário específico sobre a realidade brasileira.
Após o impeachment, no governo Temer, houve a aprovação da Lei 13.497/2017, a chamada Reforma Trabalhista. Essa lei, que foi festejada pelo setor empresarial, destruiu inúmeras garantias mínimas do trabalhador. Um exemplo emblemático disso é o Artigo 59-A incluído na CLT pela nefasta Reforma. O artigo 59-A dispõe: “[...] é facultado às partes, mediante acordo individual escrito [...] estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”.
Antes da Reforma Trabalhista, a jornada de trabalho 12x36 era excepcional e somente poderia ser adotada em pouquíssimas situações mediante autorização do sindicato. O motivo é de que essa modalidade de jornada é extremamente prejudicial à saúde do trabalhador. No entanto, com a Reforma, essa jornada deixa de ser uma exceção, podendo ser adotada indistintamente pelas empresas mediante simples acordo direto entre o patrão e o trabalhador. Não é mais necessária intervenção do sindicato de classe. Agora, a negociação é completamente livre entre o chefe e o empregado, mesmo sendo essa uma regra que visava garantir a saúde do empregado, pois a jornada de 12 horas de trabalho é, notadamente, extenuante, já que a jornada máxima diária, é, como todos sabem, de 8 horas de trabalho. Porém, com a Reforma, a saúde do trabalhador passou a ser negociada livremente. Livre Mercado, não é mesmo?
Entretanto, se fosse somente esse o problema estava bom, o absurdo extremo está na última parte do artigo “observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”.
Essa frase aparentemente inocente garante que o patrão possa exigir que o empregado trabalhe 12 horas seguidas - sem parar e sem comer - sem violar a lei. Isso é um completo absurdo! Você já se imaginou trabalhando 12 horas sem parar para descansar ou para comer? Pode imaginar fazer isso durante anos sem adquirir uma úlcera, uma tendinite ou ter alterações neurológicas?
Pois é, o Estado brasileiro achou que está tudo bem. Pra que descanso ou alimentação?
Veja, se para uma jornada máxima de 8 horas diárias é obrigatória a concessão de um intervalo mínimo de 1 hora {com a Reforma, patrão e empregado sozinhos podem até negociar e diminuir essa 1 hora para 30 minutos}; pois bem, se para 8 horas o intervalo mínimo é obrigatório, como é possível admitir que para 12 horas de trabalho o empregador poderá decidir se o trabalhador tem ou não o direito de descansar, direito de parar ou de comer? Os empresários alegam que é porque o trabalhador - esse folgado - irá “descansar” 36 horas depois da jornada. Muita folga descansar 36 horas, não é? Mas acontece que o corpo não é uma máquina, o ser humano não pode ficar 12 horas em atividade ininterrupta - sem descanso ou sem comer - sem que isso ocasione, a longo prazo, problemas digestivos, neurológicos ou lesões por esforços repetitivos entre outras coisas. Simplesmente não é possível exigir que uma pessoa seja explorada desse jeito, sem nenhum respeito pela sua pessoa, pela sua saúde!
Nós voltamos ao Séc. XVIII quando as jornadas eram de 12, 14, 16 horas ininterruptas sem descanso e com salários miseráveis? O que é isso? Como admitimos uma coisa dessas?
No mundo inteiro, as leis trabalhistas foram criadas primeiro pelo medo da burguesia e, bem depois, para evitar que as empresas escalpelassem os trabalhadores. Elas foram criadas para tentar impedir que os patrões tratassem seres humanos como corpos a serem gastos em prol exclusivamente de desejos megalomaníacos de maximização de lucro individual. Mas qual... Hoje, estamos encarando de frente a derrubada de todas as barreiras legais que tentavam proteger, ao menos em tese – e no patamar infinitamente mínimo - esses corpos explorados e humilhados.
Estamos voltando às condições absurdas de exploração das primeiras fases do capitalismo mercantil. A época em que crianças eram obrigadas a trabalhar - e morrer- em minas de carvão por poucos xelins.
Alguns, entretanto, alegarão que é exagero. É outra época, cheia de possibilidades de sucesso financeiro. Pois vou afirmar: NÃO É! É a elite econômica colocando 90% da população em seu lugar de subalterno: a filha da empregada no quartinho dos fundos, o filho do mecânico na cadeira do porteiro. O trabalhador na condição de pedinte sustentado pela esmola. É simples assim.
E não esqueçamos dos engenheiros provenientes da tal classe média alienada trabalhando na Uber, sentindo que são seus próprios patrões e que o sucesso só depende deles mesmos. Não são mais trabalhadores, agora são empresários que dependem somente de si mesmos, trabalhando 10, 12, 15 horas sob as ordens de um aplicativo que determina pra onde e para quem eles vão trabalhar, dando-lhes a falsa ideia de controle do próprio destino, afinal de contas, eles podem recusar as corridas que desejarem – sem esquecer que se recusarem corridas em demasia, o próprio aplicativo começa a sabotar-lhes a demanda. Oh que sentimento ótimo de liberdade e autoadministração. Enquanto a Uber fica trilhardária, se o engenheiro-classe-média-alienada-uberiano sofre um acidente de trânsito, arcará com todos os custos – e prejuízos – do infortúnio, mesmo que o lucro continue a ser entregue ao dono do aplicativo, que hoje não se chama mais “patrão”, mas, sim, facilitador desinteressado, intermediário de negócios entre o feliz empreendedor e o cliente satisfeito. Como é lindo o empreendedorismo!
O Brasil 2020 fez o trabalhador acreditar que ele é a pedra no sapato da economia. Ele é o problema a ser eliminado. Ele é o sugador infeliz dos lucros das empresas. Ele deve desaparecer! Essa é a nova “religião” estatal: o trabalhador é um parasita que tem que acabar. O Estado afirma isso. A elite econômica vibra com isso. O trabalhador aceita isso. E lembremos também dos outros trabalhadores que acham que não são trabalhadores, que afirmam serem "empreendedores", parte integrante da elite econômica que ri histericamente desses deslumbres, aqueles que sonham em ser os próximos exploradores sem perceber que fazem parte dos 90% de excluídos desse país.
Pois é, a segunda década do Séc. XXI veio como o fim dos tempos. Todos os direitos sociais estão sendo destruídos por meio de reformas legislativas mal estruturadas ou medidas provisórias absurdas assinadas pela caneta bic do ex-capitão alucinado.
Ataques contra os trabalhadores, contra a imprensa, contra outros países, contra órgãos internacionais, contra tudo e contra todos. Política suicida para agradar quem tem muito dinheiro. Lucro recorde dos bancos enquanto a miséria aumenta entre a população. Bombardeamento de notícias falsas, informações desencontradas; preconceito, violência, racismo, machismo, cinismo, desonestidade; acobertamento de crimes; aumento de violência policial, mortes, assassinatos, oitenta tiros contra um carro de passeio, vereadora assassinada com três tiros na cabeça, atentado com facada mais falso que uma nota de três reais; rachadinhas, contratações de parentes; escatologias, fazer cocô dia sim dia não; é só uma gripezinha, e daí?; são tantos os exemplos de barbárie estatal que fica até difícil elencar cada um deles.
Todo esse circo do horror, que nos apavora diariamente, tem apenas um objetivo: restabelecer a hegemonia econômica de quem nunca aceitou perder o poder. Eles estão vibrando mesmo diante da vergonha causada pelos atos absurdos do homem que ocupa o cargo de presidente. A tutela de seus interesses é maior do que a vergonha nacional, afinal, os fins justificam os meios. Essas pessoas continuam apoiando as sandices da família miliciana, pois sabem que seus interesses de exploração infinita dos corpos da classe operária é o seu pote no fim do arco-íris.
Não se iluda! Não há mundo melhor após a pandemia de Covid-19. Ela será usada como a desculpa perfeita para voltarmos às condições econômicas e sociais do Séc. XVIII. A política de austeridade alcançará seu grau máximo e nós, precarizados, uberizados e humilhados sofreremos toda as consequências nefastas do capitalismo neoliberal. Esse é o quadro que se desenha diante de nós… Ou fazemos algo agora para barrar a barbárie que se aproxima, ou somente nos caberá aguentar todas os efeitos da nossa inação. Amém.
E não pensem que o Estado do Bem-Estar Social é a solução. Não é! Ele é um abafador de revoltas, um estado temporário e ilusório de benesses estatais para acalmar os ânimos dos explorados, migalhas direcionadas a quem leva a nação nas costas enquanto a elite econômica pinta e borda. Governos reformistas alimentam esse monstro que - quando empanzinado - come a própria mão que o alimenta.
O planeta não aguenta mais esse sistema exploratório capitalista neoliberal. Superprodução. Utilização indistinta de matéria-prima. Exploração. Desigualdade extrema. Lixo, lixo, lixo. Está na hora de pensarmos em outras formas de Estado. Não basta retirar a elite econômica de seu lugar, é claro que o Estado burguês como um todo precisa ser implodido, mas não basta somente pensar na abolição da exploração da mão de obra, essa não é a solução. É toda a vida em sociedade que precisa ser reestruturada. A dinâmica produtiva, a vida social, o senso de coletividade dos indivíduos. Tudo precisa ser considerado em conjunto com as demandas da natureza, essa biosfera que destruímos com nossas fábricas e ânsia de lucro individual. Não basta mudar o poder de mãos, nós temos que mudar a mentalidade do mundo! E rápido, pois o relógio não pára!
E depois desse clima apocalíptico, segue, a título de exemplo, um quadro exemplificativo sobre as diferenças entre o Estado Liberal, o Estado do Bem-Estar Social e o Estado do Bem-Estar. Analise com carinho e descubra qual é o que você acha que pode solucionar essa loucura que nós nos metemos. E lembre-se: se não escolhermos bem, o Séc. XVIII parecerá um paraíso perto do que nos aguarda...
Uma escolha realmente difícil!
[1] Essa teoria política baseia-se no individualismo. No âmbito político e social, a expressão que manifesta essa ideia é “laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, traduzida como “deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo”, mais comumente grafada somente como “laissez-faire”. Essa expressão representa a ideia de deixar o mercado agir sem interferência das ações do governo. A origem da expressão é incerta.
[2] Não esquecer das Corporações de Arte e Ofício, cujos mestres exploravam os aprendizes, motivo pelo qual propiciou o nascimento das “compagnonnagem”, instituições que podem ser identificadas como embrião formador do movimento sindical atual. As Corporações de Arte e Ofício foram definitivamente extintas com a Revolução Francesa e a edição da Lei “Le Clapelier” em 14 de junho de 1791, que as extinguiu e, ainda, proibiu qualquer agrupamento, coalizão, greves ou reunião pacífica de pessoas, eis que tais situações não interessavam ao Estado por representar potencial ameaça política à ordem vigente, sob a alegação de que atentavam contra o LIVRE EXERCÍCIO DA INDÚSTRIA e do TRABALHO. Na prática, aos trabalhadores somente era autorizado trabalhar sem reclamar. As penas por desobediência variavam entre vultuosas multas, perda dos direitos de cidadania e até pena de morte. Essa lei significou a aniquilação de todas as espécies de organização de trabalhadores.
[3] Não esquecer que as crianças eram muito requisitadas, pois ganhavam muito menos que os adultos e eram ágeis e pequenas para entrar em locais em que adultos não conseguiam. As mulheres, por sua vez, já recebiam metade do ordenado reservado aos homens, imagine quanto não receberia uma criança.
[4] O Estado Liberal dá à autonomia da vontade o status de lei. Este princípio teve seu apogeu após a revolução francesa, com a predominância do individualismo e a pregação de liberdade em todos os campos, inclusive no contratual. Foi sacramentado no art. 1.134 do código civil francês, ao estabelecer que as convenções legalmente constituídas têm o mesmo valor que a lei relativamente às partes que a fizeram” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.)
[5] Manifesto do Partido Comunista. Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo. Editora Anita Garibaldi. 1989. Coleção Teoria; 3.
[6] A relação de trabalho é um contrato de trabalho. A igualdade para contratar significa que o trabalhador é plenamente capaz de negociar com o seu empregador, não precisando de absolutamente nenhuma proteção especial do Estado. A ideia é de que em razão da liberdade convencionada, deve haver um respeito à autonomia da vontade dos contratantes. Se eles são iguais, o que ambos contratarem em relação às condições de trabalho será completamente legítimo, não caracterizando exploração se o trabalhador aceitou, via contrato, trabalhar além de suas forças. Durante essa época prevaleceu a máxima jurídica “pacta sunt servanda”, que significa em latim: "os pactos são para ser observados" ou "os pactos devem ser observados" sem intervenção do Estado nas cláusulas pactuadas entre os particulares. Essa máxima tem origem no Direito Canônico Medieval do séc. XIII a XVI, com posterior desenvolvimento no Direito Natural do séc. XVII. É um princípio-base do Direito Civil e do Direito Internacional.
[7] Caso o Estado continuasse com sua política liberal, os trabalhadores continuariam sendo explorados até a morte nas fábricas, pois se há igualdade entre trabalhador e patrão, cada um pode cuidar de seus interesses sem interferência do Estado.
[8] Um livro que expressa bem essa ideia de injustiça sentida pela burguesia ameaçada é o terrível “A Rebelião das Massas” de Ortega y Gasset. Um livro que é preciso ter estômago forte para ler. Não recomendo!
*Co- idealizadora, coordenadora do Práxis Revolucionária



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